quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Nem todos oram para o mesmo Deus.

Por Gabor Steingart – Washington

Na atual crise financeira, o modelo do capitalismo dos EUA implodiu num big bang. Mas a administração Bush está tentando apagar as chamas jogando ainda mais combustível ao invés de água, e quer ver os apostadores de Wall Street serem recompensados por seu fracasso.

Há mais de cem anos, o sociólogo alemão Georg Simmel criticava os bancos por serem ainda maiores e mais poderosos do que as igrejas. Sua queixa principal — a de que o dinheiro é o novo deus de nossa era — ainda hoje é ouvida. Se Simmel tinha razão — e há indícios de que tinha —, sua afirmação teria de ser mudada para se adequar às circunstâncias de hoje: Nem todos oram para o mesmo Deus.
Entre os adoradores do dinheiro existem pelo menos três credos. Primeiramente temos os Puritanos, que submissamente levam seu dinheiro às novas igrejas, na esperança de que ele se multiplicará. Já os chineses, por exemplo, em média depositam no banco 40 por cento de sua renda. Que disciplina louvável! Temos aí o grupo dos Pragmáticos. Poupam e emprestam, mas somente nessa ordem; portanto, seu ato de poupar limita sua coragem de ousar. Essa mentalidade está presente especialmente nos países germânicos, onde os bancos de poupança são sagrados.
Por fim, temos as comunidades religiosas dos “Desinibidos”, que é especialmente popular nos Estados Unidos. Seus adeptos admitem, sem hesitar, a inconseqüência intencional, o desperdício irresponsável e a ganância onipresente.
Chamam isso de “American way of life”. Seus membros vivem só no aqui e agora, sem fazer perguntas quanto ao amanhã. Um empresta dinheiro ao outro, mesmo não sendo seu o dinheiro: ele já o pegara emprestado de um terceiro, que havia prometido obtê-lo de uma quarta pessoa, e assim por diante.


Southampton: A Trilha de Indícios Começa

Esta comunidade religiosa é a mais devota de todas. Algum tempo atrás ela adotou a prática de tratar o dinheiro esperado como dinheiro real e igualar desejo e realidade. Qualquer sinal de inibição que ainda pudessem ter, já desapareceu.

Mas como todos sabiam que os desejos superavam o número de dólares, o resultado inevitável foi uma certa lacuna de recursos, ou déficit. Capitalismo sem capital — o audacioso cerne da inovação — não poderia dar certo. E não há salvação mundana para isso — pelo menos essa foi uma conclusão a que puderam chegar o antigo Deus, aquele que carregou a cruz, e o novo deus, aquele que traz nos olhos os símbolos do dólar.

Então aconteceu o inevitável: o big bang. Três dos cinco bancos de investimento dos EUA perderam sua independência, enquanto os outros dois ainda caminham a passos trôpegos. Dois bancos de hipoteca e uma companhia de seguros passaram a ser administrados pelo governo.

O sistema financeiro global foi abalado, aterrorizando os membros dos outros dois credos. Pode haver três religiões, mas há um só céu. Se ele desabar, todo mundo morre.

Uma busca de provas que apontem com precisão os responsáveis deve, muito provavelmente, começar em Southampton, um refúgio litorâneo da elite endinheirada. A cidadezinha, no extremo leste de Long Island, fora da cidade de Nova Iorque, nos apresenta um vislumbre do quanto a ganância pode ser atraente.

É um lugar onde as opções de lotes de ações têm sido transformadas, aos milhares, em castelos dignos de contos de fada, à beira-mar. Aproveitando-se de brechas legais que possibilitam evasão tributária, os gurus financeiros de Wall Street conseguiram, como num passe de mágica, resgatar seus títulos de crédito praticamente intactos. Pelas leis tributárias dos EUA, os impostos cobrados pela compensação na forma de ações e warrants ficam abaixo da metade do índice tributário mais alto. Assim, a renda de muitos banqueiros é tributada por um índice mais baixo do que a renda de suas secretárias.


Como Menos Se Tornou Mais

Como os donos dessas mansões à beira-mar não estão lá no momento, maiores investigações exigem uma viagem de trem a Nova Iorque. No edifício que abriga, no centro da cidade, os escritórios da Lehman Brothers, que está em processo de encerramento da própria história, há mais a ser descoberto sobre a seqüência dos acontecimentos. Bilhões de dólares foram emprestados a pessoas sem condições de obter crédito, para manterem condomínios e casas sem valor de mercado. No jargão cinicamente debochado dos banqueiros, esse tipo de empréstimo era chamado de “SRSA”, sigla para “Sem Renda, Sem Ativo”.

Mesmo assim, tudo corria bem no mundo dos agiotas. O miraculoso aumento da oferta de dinheiro ajudou a elevar os preços dos imóveis em mais de 70 por cento entre 2000 e 2006. Essa indústria tinha conseguido obter lucros aumentando os riscos. Pelo menos em seus balanços financeiros, menos tinha virado mais.

Em tempos melhores, os bancos poderiam ser tidos como empreendedores; hoje, contudo, estão sendo chamados de irresponsáveis. Mesmo antes de se ter criado a expressão investimentos bancários, Karl Marx já conhecia a relação entre ambas as coisas: “O capital tem tanto horror à ausência de lucro ou de lucro muito baixo quanto a natureza o tem ao vácuo. Com lucros adequados, o capital é despertado; com 10 por cento, ele pode ser usado em qualquer lugar; com 20 por cento, ele se torna dinâmico; com 50 por cento, absolutamente ousado; com 100 por cento, ele esmagará sob seus pés todas as leis humanas; e com 300 por cento, não há crime que ele não esteja disposto a cometer, mesmo sob o risco de se autodegolar”.

O Credo de Paulson
Agora a trilha nos leva de Nova Iorque a Washington, na Pennsylvania Avenue, onde fica o gabinete de Henry Paulson, Secretário do Tesouro dos EUA. Seu departamento é tão importante que apenas um simples portão de jardim separa o Departamento do Tesouro dos jardins da Casa Branca. Paulson manteve uma abordagem indulgente em relação aos bancos, e agora planeja capitalizar sobre seus prejuízos. Ele se tornou algo como um resseguro para financiamentos altos. Seu objetivo é eliminar as guilhotinas — mas não a ganância.
O próprio Paulson já foi banqueiro em Wall Street. É um homem de boas maneiras e princípios rígidos. Em tempos de normalidade, ele tem fé no mercado, em Deus e em George W. Bush. Em tempos como os de hoje, porém, ele prefere depositar sua confiança no governo, nos contribuintes e em Bush.
Ao contrário do que tem sido amplamente divulgado, Paulson não pretende usar os recursos dos impostos para financiar a catástrofe iminente. Em vez disso, planeja fazer novos empréstimos de bilhões de dólares para o Tesouro dos EUA. “Detesto o fato de ter de fazer isso, mas é melhor que a alternativa”, ele disse na semana passada. O presidente já sinalizou sua aprovação.
É isso que acontece com comunidades religiosas quando se vêem sob pressão: tornam-se ainda mais devotas. O mesmo modo de pensar que só enxerga em curto prazo e que deflagrou o desastre desde o início agora é visto como a solução para ele. O governo está tentando apagar o fogo com combustível, não com água. Aliás, é exatamente o mesmo combustível que, no início disso tudo, acendeu as chamas em Wall Street: dinheiro emprestado.
A única diferença é que os novos empréstimos não viriam de um sexto sétimo ou oitavo membro da comunidade religiosa. Em vez disso, seriam arrecadados junto a todos os contribuintes somados. Isso representaria o fim da separação entre igreja e estado, com Wall Street se tornando a religião nacional.
O que há em comum entre esta comunidade religiosa e as outras duas já está em processo de desaparecimento. Coisas que eram consideradas inseparáveis nos tempos da tradicional e respeitada economia de mercado — tais como valor e consideração, salário e desempenho, risco e responsabilidade — agora estão sendo despedaçados em nome do governo. O capitalismo que hoje se vê nos EUA é uma versão esgarçada e degradada do que ele foi um dia.
As ações dos políticos estão fortalecendo os efeitos da derrocada econômica ao invés de amenizá-los. O capitalismo ao estilo norte-americano ainda não morreu, mas está simplesmente preparando o próprio funeral com honras. A história dos dias atuais é a história de uma morte anunciada. O que nos faz lembrar Miss Marple. 1
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1. Miss Marple, personagem ficcional de Agatha Christie, é uma detetive peculiar: uma senhora idosa e de aparência frágil, que, pela observação atenta das pessoas e acontecimentos ao seu redor, é capaz de prever que uma ou mais mortes irão acontecer — e, de fato, acontecem; daí ser citada pelo autor do artigo. Para saber mais sobre Miss Marple, clique aqui. (Nota do Tradutor)

Tirado do site www.caiofabio.com

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