Das pregações campais de Jesus, passando pelas reuniões subterrâneas dos primeiros cristãos até os nossos dias, a forma de instruir os fiéis a respeito dos assuntos relacionados ao Reino de Deus mudou, institucionalizou-se e chegou às portas do Estado. Do didaqué às modernas salas de aula dos seminários, o que antes era motivo de perseguição e alvo de sussurros agora virou pauta de discussões e leis governamentais. Durante muito tempo menosprezado pela academia secular, o ensino teológico cristão ganhou no Brasil tônus oficial, com o reconhecimento, pelo governo federal, de dezenas de cursos de educação religiosa que se submeteram às exigências estabelecidas pelo Ministério da Educação (MEC) e ganharam status de instituições de nível superior. Antiga reivindicação dos estudantes de teologia, que se sentiam discriminados pelo poder público, essa oficialização, que acaba de completar dez anos, tem promovido profundas mudanças, mas ainda não eliminou alguns temores – como o de que a validação dos diplomas poderia prejudicar o caráter espiritual da transmissão do saber teológico.
Em meio aos debates sobre as vantagens desse reconhecimento, boa parte dos teólogos, professores, líderes denominacionais, representantes de instituições religiosas e alunos ainda não têm opinião consolidada. A gênese da questão foi a adoção do Parecer 241/99. Ali, o Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu o caráter universitário do curso teológico e a possibilidade de sua aceitação como tal. Na última década, muitas instituições buscaram o aval junto ao MEC. Atualmente, há 102 cursos de teologia, de diferentes linhas religiosas, com o selo oficial, segundo o site do Ministério (a lista completa está em http://emec.mec.gov.br/, digitando-se teologia). Desses, 43 são evangélicos. A quantidade oscila devido ao constante acréscimo ou descredenciamento de instituições, uma vez que as exigências são renovadas anualmente.
Como a conquista é ainda recente, a maioria dos especialistas prefere um discurso mais ponderado em lugar do entusiasmo. Mas é notório que a oficialização dos cursos conquista bem mais simpatia do que repúdio nos círculos acadêmicos evangélicos. “Hoje não há mais opção – a necessidade de credenciamento das faculdades e cursos de teologia é uma realidade não apenas inevitável, mas obrigatória por lei”, sentencia o diretor geral da Faculdade Teológica Batista de São Paulo (SP), Lourenço Stelio Rega. “O governo atendeu uma demanda que existia no nosso meio há muito tempo”. O professor, que também é pastor batista, destaca os benefícios disso para o corpo discente: “O aluno que se forma num curso oficializado tem a prerrogativa de ser reconhecido para continuar seus estudos em outros níveis, trazendo melhores condições para servir no ministério”. Na mesma direção vai Carlos Osvaldo Pinto, reitor do Seminário Bíblico Palavra da Vida, em Atibaia (SP): “A ideia do reconhecimento é boa, pois permite às escolas evangélicas a busca da excelência na formação de seus alunos”, opina
Aperfeiçoamento técnico – O papel de avaliador para cursos de teologia do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), somado ao de diretor da Faculdade Teológica Sul-Americana de Londrina (PR), dá ao pastor presbiteriano Jorge Henrique Barro uma visão privilegiada sobre o assunto. Com a experiência de quem já avaliou muitas escolas teológicas por meio do Inep, autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, Barro tem opinião favorável ao reconhecimento governamental. “Esse processo traz muitos benefícios para a escola. Melhora as condições técnicas do curso, como o projeto pedagógico e o plano de desenvolvimento institucional, bem como a biblioteca, o corpo técnico-administrativo e o próprio alunado”, avalia.
No entender do educador, uma escola que passa por esse teste cresce e se desenvolve com mais consciência educacional. “Torna-se uma instituição dirigida por gente melhor preparada para inseri-la no contexto federativo de ensino”, pontua. É justamente na questão da inserção da Igreja e de suas instituições de ensino no mundo que a cerca que o presidente da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (Aste), pastor Manoel Bernardino Filho, vê os maiores avanços com as novas legislações. Além do aperfeiçoamento técnico de escolas e alunos, ele também enxerga benefícios sociais no processo: “Por que buscar o reconhecimento? Porque a Igreja não é um gueto; é uma comunidade que precisa viver a cidadania, cujos membros devem estar inseridos de modo sadio na sociedade”, defende.
A questão do reconhecimento dos cursos de teologia segue uma tendência mundial, embora por meio de modelos diferentes. Nos Estados Unidos, são agências de cunho evangélico autorizadas pelo governo – como a Association of Theological School (ATS) e a Association of Biblical High Education (ABHE) – que dão a chancela aos seminários, mediante exigências severas. Em grande parte da Europa ocidental, como na Alemanha, a teologia é curso superior reconhecido, sempre ligado a uma universidade. Já no restante da América Latina, acontece o mesmo processo de oficialização que ocorre atualmente no Brasil. “Pode-se dizer que o movimento iniciado no final dos anos 1990 é irreversível e atinge todo o continente”, afirma Bernardino.
Por aqui, as primeiras escolas teológicas reconhecidas foram as católicas, especialmente as Pontifícias Universidades (PUCs). Além delas, já há cursos oficializados entre presbiterianos, metodistas, luteranos e assembleianos. Sendo a teologia uma área do conhecimento já reconhecida pelo MEC, os direitos e as regras advindas da oficialização são iguais para estabelecimentos de ensino ligados a todos os credos. E a diversidade religiosa do país faz com que outras confissões também estejam buscando seu lugar ao sol no panorama acadêmico nacional – caso de um curso de bacharelado em teologia espírita kardecista, em Curitiba (PR), e da Faculdade de Teologia Umbandista, em São Paulo. Nesta última, disciplinas como liturgia afro, botânica umbandista e administração de terreiros compõem a grade, que está sendo avaliada pelo MEC.
Confessionalidade – A sedução oferecida pelo status de nível superior derruba até mesmo um aspecto que, historicamente, causa calafrios em qualquer cristão: a influência do Estado sobre assuntos da Igreja. Afinal, desde Constantino I, o imperador romano que inseriu o cristianismo na esfera de poder a partir de 313 a.D., a miscigenação de governo religioso e eclesiástico tem provocado desastres teológicos, contaminação da fé e esfriamento espiritual. Porém, a possível ingerência do Ministério da Educação sobre os currículos dos cursos religiosos não parece incomodar tanto o pessoal da área. “Não vejo conflito de interesse nisso, porque eles passam pela avaliação de uma equipe de especialistas altamente credenciados para tanto”, endossa o pastor presidente da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, Paulo Moisés Nerbas. Ele fala com conhecimento de causa, já que foi coordenador do primeiro curso de teologia protestante a ser reconhecido oficialmente no Brasil, o da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), sediado na cidade gaúcha de Canoas.
No entender de Nerbas, o reconhecimento vai ao encontro dos desejos das igrejas que mantêm instituições de ensino sérias e idôneas. “Essa legitimação oficial divulga a teologia no mundo acadêmico e atesta a seriedade, a integridade e a confiabilidade de um curso”, enumera. “Além disso, confere aos ministros religiosos um diploma que lhes abre portas de acesso muito interessantes, profissionalmente falando”. Por essa razão, o professor vê com bons olhos as exigências do governo para a adequação das escolas. “É um processo sadio”, afirma.
“O MEC não está preocupado com a questão da confessionalidade, mas com a qualidade das escolas e dos cursos oferecidos”, faz coro Manoel Bernardino. “É preciso dizer que o governo não reconhece um seminário, e sim o curso de teologia. Para isso, o seminário precisa criar uma faculdade dentro de sua estrutura”. Até o momento, de fato, não há interferência direta do governo no conteúdo do que tem sido ministrado nas salas de aula dos seminários. O Parecer 241/1999 é taxativo: “Os cursos de bacharelado em teologia sejam de composição curricular livre, a critério de cada instituição, podendo obedecer a diferentes tradições religiosas”. Noutras palavras, quem define de fato os critérios a serem seguidos são as próprias instituições de ensino, salvaguardando assim sua visão institucional e denominacional (ver quadro).
“Se uma escola é de linha pentecostal, continuará sendo pentecostal. E nenhum seminário batista, por exemplo, precisa temer ter de se tornar presbiteriano”, continua o pastor Jorge Barro. Implantado ano passado, o Parecer CNE-CES 118/09 – elaborado por pessoal externo à área teológica, e que ainda não foi homologado – diz apenas que um currículo teológico deve atender a seis eixos: filosófico, metodológico, histórico, sócio-político, linguístico e interdisciplinar. Mas representantes evangélicos, como o professor Lourenço Rega, estão justamente no meio de um diálogo sobre ajustes e aperfeiçoamentos nesse Parecer com o ministro da Educação, Fernando Haddad – e, segundo ele, as autoridades do setor têm se mostrado receptivas.
“Febre descontrolada” – Em artigo publicado na revista católica Ciberteologia (Paulinas), o professor de teologia e ex-vice-reitor comunitário da PUC-SP João Décio Passos afirma que o Parecer 118/09 significa um “avanço técnico” em relação aos anteriores. Segundo o especialista, a norma fornece parâmetros objetivos, que superam os de natureza unicamente formal até agora em vigor. Um deles, explica, é a exigência de um “perfil científico” dos bacharelados, de maneira análoga ao que já se observava nas graduações em ciências humanas. “A sua natureza normativa mantém, contudo, sob suas orientações, um senso comum em relação à teologia – ao que parece, ainda dominante no Conselho Nacional de Educação – de que ela é uma ‘coisa de Igreja’, constituída, portanto, por um universo de significados de fé sobre o qual o Estado não pode emitir nenhum parecer”, explica. Passos defende que cabe ao Ministério da Educação a função de legislar, mas sem entrar no mérito das opções de fé a que se relacionam.
Mas onde fica, nessa nova ordem, o caráter ministerial do ensino teológico? Para o presidente da Associação Evangélica de Educação Teológica na América Latina (Aetal), Márcio Matta, o credenciamento traz algumas desvantagens. Entre os problemas, estaria a desvirtuação da função histórica das escolas cristãs – “Afinal”, lembra, “elas foram criadas a fim de formar obreiros exclusivamente para ajudar a Igreja a cumprir sua missão”. Ele insiste na tese da separação entre Igreja e Estado: “Num primeiro momento, não há por que buscar o reconhecimento oficial para nossos cursos teológicos”, sustenta.
Para o presidente da Aetal, no entanto, é o próprio desenvolvimento técnico e acadêmico dos seminários que desencadeia essa aproximação. “À medida que inserimos matérias como psicologia, sociologia e filosofia em nossas grades, gera-se uma demanda natural para o reconhecimento do governo para este novo currículo”, observa. Esse fenômeno provocaria o que Matta classifica de uma “febre descontrolada” pela busca do reconhecimento, motivada pelos benefícios materiais que ele proporcionaria aos formandos – entre eles, a habilitação para o magistério de nível superior e a possibilidade de acesso a cargos públicos com exigência de graduação em terceiro grau.
O professor Neander Kraul, reitor do Seminário Bíblico Betel, no Rio de Janeiro, mostra-se bastante cético com relação aos benefícios do reconhecimento pelo sistema educacional nacional. “As evidências dão conta de que a Igreja praticamente nada ganhou com o reconhecimento, se o objetivo último dos seminários ao ofertar cursos de teologia for o de servir a Igreja”, ressalta. “Ao nivelarmos pura e simplesmente essa área de formação com as demais, passamos a admitir a teologia como campo profissional e derrubamos nosso antigo discurso de que pastores não são profissionais”, alerta. Ele vai além, e enxerga como “algo maligno” o que considera uma inquestionável ingerência do governo sobre as atividades educacionais cristãs. “O Estado passa a ditar o que é ‘religiosamente correto’. Ganhamos terreno numericamente, mas perdemos voz e influência quando se trata da verdade.”
Neander, que também é pastor, critica o nivelamento da verdade bíblica com todas as expressões religiosas. “Neste sentido, padronizar uma estrutura na qual se encaixe uma pretensa liberdade curricular é um detalhe sintomático”. Segundo ele, o segmento protestante é capaz, por si só, de desenvolver indicadores de qualidade e desempenho para nortear o trabalho dos seminários. “Sempre tivemos instituições sérias, que lutam na promoção de uma educação teológica de excelência”, lembra, acrescentando que esse ensino não pode ser visto como mais um nicho de mercado. Sobre a oficialização dos cursos teológicos, o reitor prefere lembrar o que já aconteceu no passado: “Algumas dessas iniciativas naufragaram”, aponta, “e outras estão fazendo muitos seminários que não querem ou não podem aderir ao novo modelo pecar, recorrendo a mecanismos moralmente escusos. Se tirarmos Deus do processo, como estão fazendo, tudo perde o sentido. A questão fundamental que levanto é de cunho ideológico, considerando nossa realidade histórica”, conclui.
Qualificação – A bem da verdade, ao longo destes dez anos, os seminários que já conquistaram o reconhecimento têm servido de laboratório. Por um lado, atender às exigências oficiais é custoso e exige muito investimento. Por outro, não se verificou uma corrida de novos alunos. Os dirigentes não detectaram aumento no número de matrículas por conta da novidade, e nem houve redução. Todavia, um efeito é notório: em muitas instituições, houve um sensível incremento na qualidade do ensino e na qualificação do corpo docente – o que é positivo para os alunos e, por tabela, para as igrejas, que receberão, em tese, obreiros melhor preparados.
O problema é que a necessária qualificação dos professores para atender às novas normas custou a alguns deles seus cargos. “Se muitos dos antigos mestres não acompanharem a evolução do ensino, não há como mantê-los”, reconhece o presidente da Aste. O que não significa, no entanto, que eles precisam ser necessariamente dispensados. “A instituição também pode investir nesse pessoal em outras áreas funcionais”, argumenta Márcio Matta. “Se você pleiteia uma função, precisa se preparar para ela, atender aos requisitos estabelecidos. Nenhum professor precisa ser dispensado, a não ser que ele próprio se desligue por julgar que não precisa de titulação”, concorda Manoel Bernardino.
No Seminário Teológico Escola de Pastores, ligado à Igreja Presbiteriana Betânia, o assunto suscita bem menos polêmica. Alunos e professores saúdam o reconhecimento oficial dos cursos teológicos como um avanço. “Acredito que tem havido rumores infundados, visto que a intervenção do MEC não se dá em dimensões confessionais, mas em aspectos estruturais, acadêmicos ou pedagógicos, o que é um ganho para as instituições”, explica o diretor geral Luiz Vanderley Vasconcelos de Lima. Ela e a diretora acadêmica Maria Cristina Vidal entendem que a preocupação do Conselho Nacional de Educação é a de assegurar que o ensino da teologia tenha as características próprias de um curso de nível superior. “Teologia se faz com reflexão crítica e interdisciplinar”, aponta Lima, “mas sem abrir mãos dos joelhos que se dobram em oração. E nem o Ministério, e nem ninguém, pode nos tirar isso”, vaticina.
Fonte: Cristianismo Hoje
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