Como o debate sobre Deus e o aborto interfere no segundo turno das eleições e pode inaugurar uma nova fase na política brasileira.
A religião não é um tema estranho às campanhas políticas no Brasil. A cada par de eleições, o assunto emerge da vida privada e chega aos debates eleitorais em favor de um ou outro candidato, contra ou a favor de determinado partido. Em 1985, o então senador Fernando Henrique Cardoso perdeu uma eleição para prefeito de São Paulo depois de um debate na televisão em que não respondeu com clareza quando lhe perguntaram se acreditava em Deus. Seu adversário, Jânio Quadros, reverteu a seu favor uma eleição que parecia perdida. Quatro anos depois, na campanha presidencial que opôs Fernando Collor de Mello a Lula no segundo turno, a ligação do PT com a Igreja Católica, somada a seu discurso de cores socialistas, fez com que as lideranças evangélicas passassem a recomendar o voto em Collor – que, como todos sabem, acabou vencendo a eleição.
Esses dois episódios bastariam para deixar escaldado qualquer candidato a um cargo majoritário no país. Diante de questões como a fé em Deus, a posição diante da legalização do aborto ou a eutanásia, ou o casamento gay, o candidato precisa se preparar não apenas para dizer o que pensa e o que fará em relação ao assunto se eleito – mas também para o efeito que suas palavras podem ter diante dos eleitores religiosos. Menosprezar esse efeito foi um dos erros cometidos pela campanha da candidata Dilma Rousseff, do PT. Nos últimos dias antes da eleição, grupos de católicos e evangélicos se mobilizaram contra sua candidatura por causa de várias declarações dela em defesa da legalização do aborto. Numa sabatina promovida pelo jornal Folha de S.Paulo, em 2007, Dilma dissera: “Olha, eu acho que tem de haver a descriminalização do aborto”. Em 2009, questionada sobre o tema em entrevista à revista Marie Claire, ela afirmou: “Abortar não é fácil pra mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma questão de saúde pública”. Finalmente, em sua primeira entrevista como candidata, concedida a ÉPOCA em fevereiro passado, Dilma disse: “Sou a favor de que haja uma política que trate o aborto como uma questão de saúde pública. As mulheres que não têm acesso a uma clínica particular e moram na periferia tomam uma porção de chá, usam aquelas agulhas de tricô, se submetem a uma violência inimaginável. Por isso, sou a favor de uma política de saúde pública para o aborto”.
Tais declarações forneceram munição para uma campanha contra Dilma que começou nas igrejas, agigantou-se na internet e emergiu nos jornais e na televisão às vésperas do primeiro turno. Foi como se um imperceptível rio de opinião subterrâneo se movesse contra Dilma. Esse rio tirou milhões de votos dela e os lançou na praia de Marina Silva, a candidata evangélica do PV. Segundo pesquisas feitas pela campanha de Marina, aqueles que desistiram de votar em Dilma na reta final do primeiro turno – sobretudo evangélicos – equivaleriam a 1% dos votos válidos. Embora pequeno, foi um porcentual que ajudou a empurrar a eleição para o segundo turno, entre Dilma e o candidato José Serra, do PSDB. Mais que isso, a discussão sobre a fé e o aborto se tornou um dos temas centrais na campanha eleitoral.
A polêmica religiosa deu à oposição a oportunidade de tomar a iniciativa na campanha política, pôs Dilma e o PT na defensiva e redefiniu o segundo turno. Na sexta-feira, quando foram ao ar as primeiras peças de propaganda eleitoral gratuita, o uso da carta religiosa ficou claro. Dilma agradeceu a Deus, se declarou “a favor da vida” e disse que é vítima de uma “campanha de calúnias”, como ocorreu com Lula no passado. O programa mencionou a existência de “uma corrente do mal na internet” contra ela. Serra se apresentou como temente a Deus, defensor da vida e inimigo do aborto (apesar de seu partido, o PSDB, ter apresentado nos anos 90 um projeto de legalização do aborto no Senado). Pôs seis grávidas em cena e prometeu programas federais para “cuidar dos bebês mesmo antes que eles nasçam”.
Agora, atônito, o mundo político discute que tipo de efeito a discussão sobre valores religiosos terá sobre a votação de 31 de outubro. E como ela afetará o Brasil no futuro. Tradicionalmente, o cenário político brasileiro tem sido dominado por temas de fundo econômico – como inflação, desemprego, previdência e salário mínimo – ou social – como pobreza, segurança, educação e saúde. Mas a elevação do padrão de vida dos pobres e a superação das necessidades elementares de sobrevivência podem ter começado a abrir espaço para aquilo que, em democracias mais maduras, é conhecido como “agenda de valores”. Ela reúne temas como fé, aborto, eutanásia, ensino religioso, casamento entre homossexuais ou pesquisas com manipulação genética. “Ninguém mais vai se eleger para um cargo executivo facilmente com um programa que prevê a legalização do aborto”, afirma Ary Oro, estudioso de religião e política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “É impossível ignorar a força numérica, demográfica e eleitoral da religião.”
Leia a íntegra desta matéria na revista Época desta semana
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